sábado, 7 de julho de 2012

Retorno a Oz




Ontem eu bati a cabeça na cabeceira da cama e dormi por horas.
Nos meus sonhos eu vi uma rainha malvada e não era eu.
Provavelmente você fez uma participação especial, mas não foi nada significativo. 
Apenas uma estrada de ferro levando lugar nenhum pra lugar algum. 
E lugar algum era perto de Oz. Nós, desajustados, pertencemos a Oz.
Você sabe, eu andei pela estrada de tijolos amarelos muitas vezes antes e eu sempre encontrei os gnomos de que tanto me falavam, parece tolice mas ele disseram que eu falava uma língua estranha e que por isso, eu deveria ser uma fada.
Na minha terra ideal, eu voava entre os pequenos humanóides com asas e me achava igual a eles, mesmo sabendo que jamais seria igual a ninguém, no meu coração eu ouvia os acordes da canção que dizia "diga adeus, não siga".
Talvez seja tarde demais pra voltar a dormir, talvez seja tarde demais pra tentar dar corações a todos que não nasceram com um, ou coragem a leões covardes, mas ainda existe a música. Ela te segue por veredas obscuras e claras, por estradas de arco-íris ou por mares não navegáveis a marinheiros despreparados, ela te guia por abismos e sorvedouros e ela te ensina que ninguém está sozinho. Aqui nos temos gigantes, nereidas e bruxas verdes. Temos chá e dança, ambos quentes. Temos choupanas pra dormir após um dia exaustivo sendo feliz e retribuindo, eu sei que tudo isso pode soar otimista demais e gerar descrença, mas existe uma terra mais encantada que a Terra do Nunca, mesmo dentro das pessoas mais sombrias. Mesmo um caçador sem coração pode ouvir os ecos desta Terra. O sonho sobre problemas se desmanchando a luz do sol como balas de limão é real quando decidimos escutar a sinfonia. Mas é segredo, ou pelo menos,  por enquanto é segredo.
Façamos as malas! Mas não dá pra levar muita coisa pra lá. Só é permitido um guarda-chuvas, um casaco pesado, um pote de geleia e a sua voz. Na Terra onde não são permitidos pesadelos, o único pesadelo possível é acordar.

Tudo o que eu quis




Era um dia qualquer de verão. Agora, só me lembro de que era verão, porque era a estação que cheirava o cheiro que o sol tinha quando pousava em seus cabelos. Ele era o compêndio das coisas que eu jamais seria. A minha fúria repousada, dormindo em berço quente. Ele era o golpe maior de uma dor lenta e letárgica que eu não me julgava merecedor de sentir. Ele próprio era o verão, com seu cheiro de hortelã-pimenta e estio pela grama. Ele era os becos escuros repletos de vida e anseios, as tardes com pôr do sol magenta, música e sonho diante da cortina estendida de céu e mar. Ele era a própria explosão do universo, o epigênese de tudo, quando carregado a morada de Morfeu em seus sonhos mais ternos, eu, como o homem mais pleno do mundo o embalava e sentia sua respiração trêmula na pele exposta da minha garganta. Ele era a ambição da chuva de lavar os corpos. Ele tinha gosto de morango, saliva, orvalho e dúvida. Ele era a prova de que eu era a pessoa mais repleta de erros que pudera existir. Mas eu tapara os buracos dos meus defeitos com a sua existência. E essa presença era o álibi que me eximira de participar da comédia da vida, da qual eu sequer conhecia o prólogo. Sua presença me salvava do meu asco pela normalidade, Eu o amava de um amor sem passado, ou sequer futuro. E todas as horas que eu passava a seu lado possuíam a hesitação e a brevidade de um primeiro beijo, a ingênua fragrânciada primeira canção que fui capaz de cantar, com os lábios secos e o rosto transbordando de fé. Ele foi pra mim, e ainda o é, a própria imagem de um céu torto ou um paraíso desfeito. E veio a mim como um Deus destronado que exalava adoração apenas com o seu bater de cílios na pele tímida. E eu, cuja a resignação falhava, a cada tentativa de superá-lo, que fazia da sua ausência um pretexto para meus atos patéticos e tolos que no fundo, eu sabia, vinham da minha vulnerabilidade. Em mim, o amor passava como um sopro, uma vida que por medo esquecera de viver. Como todas as estórias de amor, a minha não duraria o tempo exato da queda de uma lágrima. Quando eu soube que uma chuva de maio não poderia durar eternamente, tampouco um verão, eu o deixei. Porque ele queria uma casa com lareira, crianças esperando a ceia e colocando sapatinhos na janela. Ele queria uma constelação com seu nome e um casamento num dia em Maio. Eu nunca quis nada... Nada além de acordar naquele embaraço de pernas e ouvir o seu bocejo, de beber os seus sorrisos até a embriaguez total, de contar os fios do seu cabelo até que ele me parasse. Eu que queria seu pasmo, seu ódio, sua irritação, não estava disposto a aceitar seu futuro tédio, porque com o meu eterno cansaço, nada poderia lhe oferecer que não fossem as mesmas promessas dúbias e vazias. Mas eu era egoísta o suficiente para dizer que tudo o que eu queria era ele, mas era também tudo o que eu não ousara ter. Então ele encontrou alguém que poderia lhe dar o que eu não poderia jamais. Hoje, ele tem tudo o que sempre quis. Eu nunca terei e isso não parece justo. De tudo, restou apenas o sopro e a canção.

Ps1 Texto anteriormente postado no meu antigo blog e num site de fanfics, como não ando escrevendo muita coisa pro blog, resolvi passar o material de lá pra cá, para os que não liam meus textos no outro endereço. That's all!

domingo, 10 de junho de 2012

Por quem os sinos não tocam


"E se Deus fosse um de nós? Apenas um desajustado como um de nós? Um estranho no ponto esperando o ônibus, tentando fazer seu caminho de volta pra casa? Voltando para o céu, solitário?"

Era fácil diferenciar um funeral comum de um funeral de um suicida.
Para os suicidas, os sinos não tocavam e ninguém emitia qualquer protesto a respeito. Fazia-se um voto mútuo de silêncio na região, silêncio em nome dos desolados, que na Terra não encontraram ouvidos, nem conforto.
Deus, quem sabe, haveria de demonstrar piedade, a piedade que eles não encontraram entre seus iguais. Iguais? Piedade? Talvez, afinal, nem Deus em toda sua santa onipotência ousasse ser piedoso com os desolados. Não era Deus que não permitia que os sinos fossem tocados? Não havia sacro-luto por aqueles que decidiam morrer. Mas decidir morrer não seria entender a quão finita é a trajetória que nos leva, qual barquinhos de papel, ao abismo? Hamlet, Fausto, Bentinho, Seixas, Otelo, Aquiles e outros heróis sem idade já se fizeram a mesma pergunta. Acho que eles nunca encontraram resposta... Mas a questão continua lá, suspensa por uma corda invísivel, como uma esfinge de olhos de safira pronta pra executar sua vingança "a vida vale a pena?"
Essa não é uma canção de esperança, mas também não exalta a desolação. É antes um madrigal de realidade, uma injeção de hoje, que paralisa o sangue e faz os olhos se estreitarem. A verdade é essa bola de lã que o gato brinca de enrolar e acaba se perdendo dentro dele mesmo. Você se faz a mesma pergunta a noite entre um rascunho e outro de poema "Vale a pena a vida? Viver uma vida curta cheia de glória ou ter uma longa jornada de tranquilidade e ter meu nome esquecido?", você desfaz a mortalha lentamente a noite pra não apertar o gatinho desfechando o derradeiro tiro, você se engana porque pensa que nós não sabemos, você se engana quando pensa que não somos coerentes. Eu posso escolher trocar de pessoa a hora que eu quiser e de palavras também. Os sinos continuam tocando nas colinas, aqui e longe daqui, mas um dia eles podem não tocar... E todos saberão o que aconteceu, a vergonha te perseguirá e ilhas oníricas e você não terá descanso. Dizem que o Vale dos Suicidas é tão frio quando o Limbo, tão pesado quando o mais cinza dos céus. Eu te espero lá, mas não quer dizer que eu vá me suicidar pra isso. Poucos sabem, mas o Vale dos Suicidas é aqui mesmo e continuar existindo sem viver é a mais cruel das mortes, é o assassinato da sarça viva que é a alma. Morra, mas não morra sem existir é o que nos gritam os sinos, os abutres, as folhas de outono e até mesmo as esfinges. Se precisar de um soco no estômago pra voltar a vida, conte comigo. Se precisar de um beijo, eu estou além das estrelas e da Terra de Oz há muito tempo, mas eu ficarei feliz em tocar os sinos.

Ps1: O nome foi inspirado no livro de Ernest Hemingway "Por quem os sinos tocam"
Ps2: De fato, é uma tradição medieval (ainda em voga em alguns países da Europa) não se tocar as famosas badaladas em funerais quando é sabido que trata-se de um suícidio.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Colar de coração


Havia uma rua na terra da garoa, muito maior do que menor, com velhos e velham que tremiam, homens e mulheres que pressavam e meninos e meninas que por ali corriam.
Todos com medo o suficiente, menos uma guriazinha, a que desdenhava.
Aquela, um dia saiu de lá com um Colar de coração inventado no pescoço.
Sua mãe a mandara, com uma cesta de remédios à avó.
Pelo caminho encontrou apenas homens que suavam, traficantes que por ali traficavam e deixavam cá e lá marcas de violência. Lobo não havia nenhum. O lobo se havia tranformado em homem. O homem havia destruido o lobo.
Ela ía cantando uma canção antiga, canção que sua avó costumava cantar a beira de seu berço (...) Nessa rua, nessa rua tem um bosque que se chama que se chama solidão (...)
Ela parou. Sua visão só via vermelho quando ela tomou o caminho mais encurtoso as pernas transpassando uma a outra como fitas na festa de Santo Antônio. Os tiros se ouviam de longe. Colar de coração não podia deixar que uma bala perdida acertasse o caminho.
Demorou pra avistar ao longe a avó, que de súbito a neta reconheceu.
- Sou eu vovó, colar de coração com a cesta de remédios, como a mamãe mandou.
- Deixa na calçada essa cesta e vem pra cá enquanto é tempo.
Mas agora Colar de coração se espantava não só com o cansaço das pernas mas também com a quantidade de sangue-sangue ao redor da avó tão querida quanto se perdendo.
"- Por que essas feições tão cansadas, vovó?"
"- É porque não poderia nunca pra sempre te sorrir, minha netinha."
"- Por que essas mãos tão inertes, vovó?"
"- Por que nunca mais vou tocar teu rosto, minha netinha."
"- Por que esses lábios trementes, gelados e roxos mais que amora, vovó? "
Agora era Colar de coração que chorava.
"- Por que nunca mais o tempo me deixará te beijar, minha neta."
"- Por que esses olhos tão sem luz e cor, vovozinha?"
"- Porque já não te posso ver, nunca mais, minha netinha." - A avó soltou um último gemido quase grunhido.
Pela primeira vez Colar de coração sentiu medo e pela primeira vez, sentiu o lobo por perto, um lobo que vestido de homem apontava o cano da morte em sua cabeça, mas ainda em seu coração ao lado do corpo que havia sido sua avó.


Texto inspirado em "Fita Verde no Cabelo" de João Guimarães Rosa, feito exclusivamente para meu Professor Renato Gaspar de Literatura Comparada.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Versões


Você fala mas eu não estou realmente te ouvindo. Afinal, João-amava-Maria-que-amava-que-amava-que-amava-que-nunca-amou-ninguém.
Nós não sabemos nada e esse nada é tão concreto, não é?
Eu costumava cantar "A Oração de São Francisco" na escola, você lembra como era?

 "Oh, mestre, fazei que eu procure mais:
   Consolar, que ser consolado;
  Compreender, que ser compreendido;
  Amar, que ser amado.
 Pois, é dando que se recebe,
 É perdoando que se é perdoado."

Essas palavras, por algum estranho sortilégio, vagavam ébrias pela minha mente agora.
Valeria a pena viver em constante Via Crucis apenas para ser perdoado no final? E se tivesse mais haver com o caminho do que com a chegada? E escrevendo, estaria eu respondendo às minhas próprias questões ou criando novas indagações para as noites insones. Não sabia dizer, nunca sabia dizer. Me engasgava no meio, na vírgula-respiração. Faltava jeito que desse jeito na minha completa falta de jeito. Mas talvez fosse esse mesmo relaxo que deixasse meu sorriso mais verdadeiro e menos insípido pra qualquer coisa que tivesse cor e gosto de vida. Sempre consegui reconhecer coisas vivas-vivas e coisas em estado de putrefação e prometi que minha alma jamais chegaria a conhecer intimamente as plantas do chão, não se eu tivesse força física pra impedir a queda.
Que eu procure mais consolar do que ser consolado.
Porque pedir por empatia num mundo doente, onde não olhar nos olhos é normal, acaba sempre soando piegas, mas eu acredito na beleza, nem tudo tem que fazer parte do caos e do lodo, nem tudo é lobo mau, nem tudo é lado esquerdo.
Comprensão. Eu queria compreender a vontade que tenho de fugir mas antes preciso entender porque todos querem ficar. Porque eu nado contra a corrente, quando poderia seguir o fluxo, o fluxo caudaloso de um rio fluindo pra lugar nenhum.
"Nowhere's for genious".
Eu nunca tive grandes ambições, sou pequena até em anseios... Nada que uma aguçada percepção pra intenções ocultas não possa compensar. Você sorri pra mim e seus dentes estão podres, eu posso perceber seus dentes e o sangue por dentro deles, não há como escapar e nós não somos mais crianças, seu lobo.
Ninguém nessa cidade sabe amar, ninguém nesse estado, ninguém nesse planeta aprendeu a falar com anjos. Eles repetem constantemente "Precisamos de educação o suficiente pra que as crianças pensem por elas mesmas". MENTIRA. Ninguém quer ninguém pensando sozinho, porque pensar sempre é o primeiro passo no caminho para o inferno e o inferno é tudo o que você e sua mente cansada pode conceber. É tão fácil hoje visualizar um atómo, é tão difícil pra não dizer árduo, enxergar o outro do seu lado. Caminhando com os mesmos defeitos, as mesmas anomalias, a mesma falta de esperança, o mesmo sonho de esperança, o mesmo tédio, a mesma nostalgia. Não tem diferença nenhuma se você encarar o monstro de olhos verdes de perto, mas você tem medo, você é muito jovem. O inferno são os outros e como eu interpretei Sartre errado, eu estou jogando na mesa as minhas culpas, mas não posso jogar minhas cartas, não posso abandonar minha arrogância porque me despir da arrogância seria ficar nu no cru da palavra e ninguém se sente bem nu. Nem nu, nem pego numa mentira. Pois bem, você foi pego numa mentira. Suponha que agora a Chapeuzinho se vire para o lobo - O cenário, só pra citar, é uma floresta escura, densa, daquelas de provocar erosões nas solas dos pés - E ela sabe, que o Lobo é de mentira e que ele desaparecerá assim que ela abandonar todos os seus medos e por assim dizer, conquistar a morte, ele morrerá, junto com todos os outros medos infanto-juvenis

(Dormir com os pés descobertos, assistir filmes de terror, ir ao banheiro, medo do escuro, passar embaixo de escada, dormir com a porta do guarda roupa aberto, comer manga com leite à noite, chamar a loura do banheiro, sapatos com a boca virada pra baixo, apontar estrelas)

Um milésimo de segundo de coragem além da coragem e você garante a morte instantânea de todo o seu repertório de medos. Um belo trato, você não acha?
Fique no lugar dela, sinta o olhar febril do Lobo Mau, ele te encara, não desvia, dá algumas bufadas de ar, seus olhos são frios e quentes ao mesmo tempo, as vezes ele parece amansar, outras parece querer te abocanhar. Quanto tempo você resistiria na frente do que te dá mais medo? No lugar de maior desespero? Sem chorar, sem correr, sem mentir.

Nós não somos mais crianças, seu Lobo. E você é um mentiroso. Sua vida é uma mentira, seu papel de vilão-coadjuvante torna tudo pior. Você viveu por séculos uma vida que não é tua e agora acha que vai me assustar. Ninguém ama mais, você tá certo. Ninguém olha para os lados quando atravessa a rua, todo mundo acha que seus anjos vão ajudá-los, mas a maioria se nega a acreditar neles porque isso mostraria uma bruta infantilidade. Quem é infantil aqui, seu Lobo? Eu por estar falando com você que, obviamente, não existe além dos livros do Perrault ou você por estar falando comigo e achar que eu estou mentindo, quando você é a grande piada lá fora? Acontece que eu sou tão mentira quanto você, mas você não reconhece. As pessoas lá fora estão se matando porque desaprenderam a ouvir o que o vento sussurra, eu vou ficar mais doente que a vovozinha se eu ficar lá fora, aqui dentro, nos meus sonhos e no meu medo, eu estou protegida, né, Seu Lobo? Parece que a floresta escura é mais mãe até que a mãe da gente. Nós caímos na mesma mentira, é difícil escapar, eu sei. Eles pegam tuas palavras, distorcem, distorcem, retorcem até elas virarem uma massa heterogênea de pus e sangue e de repente você não é mais você. Você tenta se agarrar a uma linha suspensa, mas ela cai. Você falha e chora, porque te disseram que seria fácil e não é. Então você descobre que tem que aceitar toda a brutalidade que vem da humanidade, porque ela também é você. Porque dentro de você existem moléculas de ar e moléculas que já foram parte das grandes explosões. É isso. Somos todos grandes explosões esperando pra ocorrer. O que vai nos despertar? Uma música? Um livro? Um acorde? Um toque? Um abrir de olhos simplesmente? Eu sei o que vai nos despertar, eu sei quando vamos explodir, Seu Lobo Mau: O perdão.

Eu abri os olhos e o Lobo Mau havia sumido.

Ps: Por indicação da autora, leia ao som de "Two Tongues" do The Swell Season e "True" do The Frames.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Um bom coração


"Eu era mudo e só" era o conto que ele lia enquanto sua mulher passava o café - bem forte - como ele costumava gostar.
"Com creme e canela, meu bem?"
"Puro mesmo, muito obrigado"

Nunca dissera uma palavra mais rude. Gesto, então? Qual o quê! Jamais fizera.
Nenhum leve vislumbre de sorriso sarcástico esboçara em vida.
Era o que podíamos chamar de 'Homem bom".
Diziam - a boca miúda - que Alfredo tinha um bom coração.
Quando batiam em sua casa, as vezes às cinco da manhã, pedindo comida, ele não apenas dava o que lhe era pedido, como também convidava os pedintes para entrar e assistir o noticiário da manhã em sua companhia, como se julgasse que expô-los a constantes visões da sua própria realidade escancarada fosse uma forma de reforma social, mesmo que pequena e ineficaz.
Ele nunca negara ajuda financeira ou de qualquer outra ordem aos camaradas, nunca dissera uma calúnia ou levantou falso testemunho contra alguém.
Pagava seus impostos, declarava imposto de renda, ía aos cinemas ao sábado.
Nunca traíra.
Da namoradinha do jardim de infância - a quem dera sua primeira aliança roubada de um doce - Até a a mulher com quem casara e que lhe dera dois adoráveis filhos, um menino e uma menina (como manda a etiqueta), ambos sadios e bem educados, uns anjos.
Sempre cumprira bem os rituais de passagem da vida. Aniversários, formaturas, festas de empresa. Nunca ouviu se falar dele um "Ai" sequer. Mesmo entre os mais maledicentes, os que possuiam em uma única boca, duas línguas e que assim também vestiam uma cara por dia pra desfilar por aí. Nunca Alfredo tinha sido alvo de chacota.
Ele era um exemplo de um homem de caráter limpo e bom coração, coração de ouro.
Ajudava idosos e deficientes nas ruas, cedia lugar no assento do ônibus.
Fazia exames médicos com frequência, ía a todas as reuniões escolares dos filhos. Nunca jogou papel no chão ou proferiu uma mentira... Mesmo quando dizer a verdade era o que mais o machucaria. Sempre aceitou a dor em silêncio como um mártir.
ía a Igreja como um sacristão e sempre teve uma generosidade que abragia a todos, mesmo esquecendo-se de ser generoso com ele mesmo. Deixava a mulher gozar duas, três vezes e ele nada. A sogra - em pessoa - dizia que nunca havia visto alma tão grande e coração tão bom quanto o do genro. Na pequena cidade onde moravam diziam que Deus (Oxalá) em pessoa iria recebê-lo nos portões do céu quando ele lá chegasse.

Eu era mudo e só - Um dia olhei no espelho: De que cor eu sou?

Já eram 21:00 e nada. Alfredo não havia voltado pra casa.
"Ele nunca se atrasa"
Sua esposa muito preocupada não conseguia atinar pelo motivo que faria com que ele pudesse cometer esse tipo de falta, que para ele próprio era intolerável.
Apesar de tudo, ela aprontou a mesa do jantar que era pra estar tudo como sempre esteve quando ele voltasse... Acontece que ele nunca voltou.
Anos depois, ligaram pra ela. E tudo explicou-se de uma fez sem fecho nem desfecho.
Alfredo morrera depois de alguns dias internado. A parte disso tinha família formada em uma cidade vizinha: Filho, mulher, iguana e tudo. Até casado no papel o safado era... mas isso era mote pra outra estória. A causa da morte? Coração.

Quem dera!





Se eu fosse um trovador, eu desenharia o teu sorriso numa rima.
Pra ficar em mim, pra ficar em cima
(Dos olhos) De quem tem fé.
Eu faria de ti, pequena, a lua do seresteiro,
A nascente ardente-enchente do barqueiro do Velho Chico.
Te enfeitaria de poesia onde haveria de existir só prosa.

Se eu fosse um astrônomo, descobriria uma estrela
(Ao lado de Órion ou da Ursa Maior) pra te dar.
E dos teus olhos, gentis, retiraria duas constelações de maior viço
Pra me curar do feitiço ou pra mais ainda me enfeitiçar.

Se eu fosse um sambista, Valei-me, Rosa! Acudi-me, Cartola!
(Dos teus quadris) comporia uma nota, pra cada balançar
E na levada da melodia, a Graça e o Ritmo haveriam de querer me fazer companhia
Apenas para a minha dama (mais que todas) admirar.

E se você não existisse nesse pobre poemeto,
Faria de ti (qual Safo) minha imaginária amante
E te tiraria das estrelhinhas, lhe dando o lugar que lhe cabia.
Isso tudo se eu fosse nada mais do que teu.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Não corra. Não grite. Não Morra. - Parte II


Ele tinha 17 anos quando fora levado pra lá.
Asseguraram que ali ficaria seguro e protegido do mundo.
Mas desde o ínicio ele sabia que era uma mentira.
Como todas as mentiras bem contadas, era bom acreditar, era suave e reconfortante mas logo a natureza assustadora do lugar começaria a dar as caras.
Teodoro tinha sido considerado uma criança especial. Dons artísticos extraordinários e uma incrível capacidade para cálculos também. Tocava piano e animava a todos com seus ditos espirituosos. Um amor de criança, mesmo tendo QI elevado.
Ele tinha também muitos amigos... Sua brincadeira favorita era esconde-esconde. O saldo depois de dias banhados a groselha e torradas com geléia de uva enquanto brincavam na casa de dois andares eram alguns joelhos esfolados e bochechas rosadas de contentamento.
Teodoro conheceu os homens de branco quando entrou na adolescência. Seus amigos diziam que eles não eram confiáveis e que talvez eles o raptassem e dessa forma, ele nunca mais veria sua família e seus amigos.
Inicialmente, ele não prestou muita atenção aos conselhos e apelos, as vezes inflamados, dos amigos. Mas não custou muito tempo pra que o que era apenas especulação ganhasse formas de horror e pânico.

Num dia qualquer de maio de 1956, eles vieram. De branco. A maldita cor que continha todas as outras e por isso, Teo a achava a mais prepotente das cores.
Ele prefiria o vermelho-vinho-doença ou o preto-noturno-solidão, mas o seu pesadelo vestia branco, disfarçando-se de pureza.
Arrancaram-no de sua casa, seus amigos gritavam. Gritos de dor, dor quase física. Era como se tirassem algo de muito caro de dentro da epiderme de todos.
Ele chorou, mas não soltou lágrima nenhuma. A noite fazia urros macabros e o ar frio entrava pela porta do lugar onde ele foi parar.
Toda vez que ele tentava se comunicar com alguém, um ferro quente marcava-lhe as costas. Era pra "lembrar que o silêncio ali valia mais que diamante" - ou pelo menos foi o que lhe dissera o aparentemente menos cruel do grupo.
Por muito tempo, ele não compreendeu o que se passava e em completa solidão, tentava entender porque o haviam aprisionado e porque o feriam tanto. Depois vieram as altas doses de líquidos de todas as cores e pílulas indigestas. Diziam que era para o bem dele. Mas nada naquele lugar inspirava bondade.


Aparições.

A primeira vez que teve contato com um de seus amigos, Teo ficou estupefato. Julgava-se louco. Como vocês podem estar aqui? Eles os trouxeram pra cá também? A responda foi afirmativa. Também eles foram arrancados de seus lares. Precisamos voltar pra casa! O que eles fazem é errado. Eu ouvi falar de experiências... É ilegal! É insano.


Silêncio. Dor. Luz. Branco.

- Você sabe por que está aqui, não é Teo? Preferimos não assustá-los. Mas você é um dos nossos mais complicados... Eu realmente queria não ter que ser sincero com você, mas não está me deixando escolhas. Nós não somos monstros, você sabe. A verdadeira ameaça pra você são seus amigos. Você sabe que eles não são reais, não? Eles são extensões suas. Desejos inacabados. São parte de você. Você os criou. Por isso, eles estão aqui.
Seus pais te enviaram pra cá há muito tempo. Você era só uma criança autista, mas seu quadro se agravou. Você é esquizofrênico, Teo.

O branco se fez vermelho.

Como Napoleão, Teo conseguiu sua liberdade. Assim como a de seus amigos. Eles estão livres. E assim como me visitam pro chá, podem um dia chegarem a visitar você. Vocês os deixaria entrar?

Não corra. Não grite. Não Morra. - Parte I



"Ah, mas essas coisas não existem! Muito menos haveriam de acontecer justo num lugar como esse, tão seguro."

- Como se não acontecessem crimes em locais seguros. -

"Nós não vamos morrer. Somos íntegros, quitamos nossas dívidas com os inquilinos. Nunca destratamos mulheres e crianças e só lutamos com homens quando nossa honra é agredida de maneira atroz, tão atroz a ponto de libertar do nosso interior este monstro insaciável por vingança. Caso contrário, ele continuaria adormecido."

- Como se os inocentes tivessem sempre chances de escapar pra fora do fio da navalha. Como se o mundo fosse tão justo quanto um bom juíz de paz que entregasse ao Tártaro apenas os vilões. Como se aqueles que carregam a cruz ao peito e a palavra divina aos lábios estivessem insentos de toda a mácula da torpeza humana. -

"Precisamos permanacer aqui. Calmos. Quietos. Parados. Ninguém de fora pode nos ver aqui e nem nos causar mal."

- Você acaso se faz de tolo? Não enxerga o mal que nos espreita? Todo esse lugar tem cheiro de morte e putrefação. Nós seremos os próximos! Precisamos sair daqui enquanto não desconfiam que temos este intento. Por favor, me escute, ao menos essa vez... -

Escuro. Sufoco. Engasgo. Pigarro. Alívio. Escuro.

Agora ele estava numa sala.
Lembrava-se vagamente de já estar estado ali. Claro, aquela não era a primeira vez que tinha incitado companheiros para se rebelarem. Ele não se considerava o melhor por isso, nem líder ou uma figura de destaque no meio de alguns medrosos e medíocres, não. Nem passava pela cabeça dele que sua vontade de fugir fosse motivo de orgulho. Era normal que assim fosse. Pra ele, nada parecia mais incoerente do que estar preso sem ansiar a liberdade. Assim como se por acaso lhe ocorresse de cortar-se sem querer e imediatamente retirasse o braço pra não ferir-se mais. Seria natural para um homem que deixassem que lhe cortassem a carne e nada fazer exceto assistir a sangria? Porque pra ele, era exatamente isso que seus caros colegas faziam: Assistir a sangria - E mais! Era como se pedissem que enfiassem a faca com mais brutalidade e a deixassem ali. Nada de estancar, nada de emplastos. Queriam a dor viva.
E, bem, ele convivera com essa dor por muito tempo, quase que a conhecia sem suas firulas e maquiagens. Ele a viu nua em pelo, como nenhum outro gostaria. Ele encarou seus olhos de coruja quando lançado a noite longa e fria, não restava nada senão tocar o tango argentino. E não gosto do que viu.
Por isso, é fácil entender os motivos que ele tinha pra se rebelar contra o comodismo enervante de todos ao seu redor. A liberdade existia pra que lutassem por ela, de espada em punho. Ninguém poderia ser feliz se privado do livre uso de seus próprios passos.

A sala. Era úmida, como haveria de ser. Não tinha iluminação alguma. O feixe de luz que a cortava e dividia em sombra e réstia de clarão era oriundo do rodapé da porta, porta de aço. Dura, firme, intransponível (diziam). Ele lá esteve por muitas vezes, sempre que os homens de branco ouviam algo sobre liberdade ou alguma ameaça do gênero, eles o jogavam lá.
Ele sabia que não tinha sido o único a pisar ali. O chão era todo marcado com pequenos rabiscos. Poemas de Wilde, Poe, Milton. Datas aleatórias. Contas. Nomes de mulheres. Juras de amor, cartas suícidas e Odes a liberdade. Claro. Os heróis que por ali haviam passado deveriam ser como ele. Um coringa num jogo de baralho. Aquele que sabia que está inserido numa realidade que lhe tira do jogo, que lhe faz rastejar.

(13 - 05 - 1956)

Um segundo é o suficiente pra que tudo ao seu redor mude, não? É assim que todos gostam de pensar. Um segundo. Um tiro. Um acidente fatal. Algo que nunca deveria ter acontecido.
Morrer é fácil. Um segundo é a morte de qualquer coisa. A morte é fácil, quase nascimento, quando é com os outros. Mas você nunca desejaria, de fato, que um segundo fosse o responsável por você perder a sua vida. Ou pelo menos a vida que você costumava conhecer.
Foi necessário apenas um segundo pra que Teodoro perdesse a memória e perdesse aquilo que mais prezava, a sua liberdade.
Ele foi levado pelos homens de branco. Muito se falava deles, mas ele nunca tivera a chance de ter com eles, a mínima conversa. Julgara tê-los visto uma vez no circo quando tinha 6 anos. Nesta ocasião, avistara um grupo de branco, com sorrisos medonhos parados atrás do picadeiro. Como a lembrança era rasa, esvoaçante e remota, decidira por pensar que não havia passado de um sonho. Mas o sonho de menino mais tarde se tornaria um pesadelo. Um pesadelo de congelar o sangue dentro das veias e derreter a retina dos olhos.

terça-feira, 13 de março de 2012

Marina




Mar e rima.
Tarde de sol e festa,
Eu te desenho com as mãos já gastas,
pela areia fina.
O azul dos olhos que reflete o céu sem nuvens,
O azul que se espelha nas ondas,
Onde se espalham suas mãos de menina.
E a onda se faz amiga da poesia.
Da poesia que existe em tudo que está,
Em tudo que a rodeia.
Nos peixes da costa que vem brincar entre teus pés.
Na canção que te eterniza, na canção dos pássaros,
Das ilhas celestes ao infinito.
O infinito cabe na rima que te eterniza.
Nas ondas do oceano, eu vejo a tua estória.
Envolta em mar, envolta em rima.
Tuas mãos tão brancas a recolher conchinhas.
A brincar com a vida, a jogar com a sorte.
Alegres estão os mares por estarem aos teus pés,
Tristonhos estão os campos, por teres sido arrancada de lá.
Flor de outono.
Tão rara e fugídia como as estrelas cadentes.
E quem sabe não veio do céu a estrela que tens entre as mãos?
E quem sabe não é do mar a estrela que guardas no coração?

terça-feira, 6 de março de 2012

Pausa



Acho curioso esta canção estar tocando justo agora... quando ela já não pode representar nada. O nada ainda está ali esperando na esquina.
Eu vesti tantas fantasias e tantas máscaras... Algumas, inclusive, podem me causar um bruta orgulho, um orgulho besta pra criança adormecida.
Andei com os pés na lama e não me sujei. Você sabe como é?
Não era ruim, não era bom. Era natural e qualquer coisa que consiga ser natural chega ao patamar de inexplicável e a gente bem que se contenta com tudo o que não pode entender.
Eu ando só à beira da vida. É muito mais fácil andar assim. É muito melhor não ter mão pra segurar. Ou pelo menos é o que me parecia.
Não quero lembrar dos olhos dela. Eu não vou lembrar dos olhos dela.
Eu não posso lembrar dos olhos dela.
Eu não sei o que dói mais: Essa ausência ou o retorno de tudo o que dói mais que ausência.
Talvez a ausência não seja a dor em si, mas o intervalo da dor.
A pausa dos sentidos.
O ponto pra respirar.
Mas o mar... o mar é feito de saudade e de pausas.