segunda-feira, 30 de abril de 2012

Um bom coração


"Eu era mudo e só" era o conto que ele lia enquanto sua mulher passava o café - bem forte - como ele costumava gostar.
"Com creme e canela, meu bem?"
"Puro mesmo, muito obrigado"

Nunca dissera uma palavra mais rude. Gesto, então? Qual o quê! Jamais fizera.
Nenhum leve vislumbre de sorriso sarcástico esboçara em vida.
Era o que podíamos chamar de 'Homem bom".
Diziam - a boca miúda - que Alfredo tinha um bom coração.
Quando batiam em sua casa, as vezes às cinco da manhã, pedindo comida, ele não apenas dava o que lhe era pedido, como também convidava os pedintes para entrar e assistir o noticiário da manhã em sua companhia, como se julgasse que expô-los a constantes visões da sua própria realidade escancarada fosse uma forma de reforma social, mesmo que pequena e ineficaz.
Ele nunca negara ajuda financeira ou de qualquer outra ordem aos camaradas, nunca dissera uma calúnia ou levantou falso testemunho contra alguém.
Pagava seus impostos, declarava imposto de renda, ía aos cinemas ao sábado.
Nunca traíra.
Da namoradinha do jardim de infância - a quem dera sua primeira aliança roubada de um doce - Até a a mulher com quem casara e que lhe dera dois adoráveis filhos, um menino e uma menina (como manda a etiqueta), ambos sadios e bem educados, uns anjos.
Sempre cumprira bem os rituais de passagem da vida. Aniversários, formaturas, festas de empresa. Nunca ouviu se falar dele um "Ai" sequer. Mesmo entre os mais maledicentes, os que possuiam em uma única boca, duas línguas e que assim também vestiam uma cara por dia pra desfilar por aí. Nunca Alfredo tinha sido alvo de chacota.
Ele era um exemplo de um homem de caráter limpo e bom coração, coração de ouro.
Ajudava idosos e deficientes nas ruas, cedia lugar no assento do ônibus.
Fazia exames médicos com frequência, ía a todas as reuniões escolares dos filhos. Nunca jogou papel no chão ou proferiu uma mentira... Mesmo quando dizer a verdade era o que mais o machucaria. Sempre aceitou a dor em silêncio como um mártir.
ía a Igreja como um sacristão e sempre teve uma generosidade que abragia a todos, mesmo esquecendo-se de ser generoso com ele mesmo. Deixava a mulher gozar duas, três vezes e ele nada. A sogra - em pessoa - dizia que nunca havia visto alma tão grande e coração tão bom quanto o do genro. Na pequena cidade onde moravam diziam que Deus (Oxalá) em pessoa iria recebê-lo nos portões do céu quando ele lá chegasse.

Eu era mudo e só - Um dia olhei no espelho: De que cor eu sou?

Já eram 21:00 e nada. Alfredo não havia voltado pra casa.
"Ele nunca se atrasa"
Sua esposa muito preocupada não conseguia atinar pelo motivo que faria com que ele pudesse cometer esse tipo de falta, que para ele próprio era intolerável.
Apesar de tudo, ela aprontou a mesa do jantar que era pra estar tudo como sempre esteve quando ele voltasse... Acontece que ele nunca voltou.
Anos depois, ligaram pra ela. E tudo explicou-se de uma fez sem fecho nem desfecho.
Alfredo morrera depois de alguns dias internado. A parte disso tinha família formada em uma cidade vizinha: Filho, mulher, iguana e tudo. Até casado no papel o safado era... mas isso era mote pra outra estória. A causa da morte? Coração.

Quem dera!





Se eu fosse um trovador, eu desenharia o teu sorriso numa rima.
Pra ficar em mim, pra ficar em cima
(Dos olhos) De quem tem fé.
Eu faria de ti, pequena, a lua do seresteiro,
A nascente ardente-enchente do barqueiro do Velho Chico.
Te enfeitaria de poesia onde haveria de existir só prosa.

Se eu fosse um astrônomo, descobriria uma estrela
(Ao lado de Órion ou da Ursa Maior) pra te dar.
E dos teus olhos, gentis, retiraria duas constelações de maior viço
Pra me curar do feitiço ou pra mais ainda me enfeitiçar.

Se eu fosse um sambista, Valei-me, Rosa! Acudi-me, Cartola!
(Dos teus quadris) comporia uma nota, pra cada balançar
E na levada da melodia, a Graça e o Ritmo haveriam de querer me fazer companhia
Apenas para a minha dama (mais que todas) admirar.

E se você não existisse nesse pobre poemeto,
Faria de ti (qual Safo) minha imaginária amante
E te tiraria das estrelhinhas, lhe dando o lugar que lhe cabia.
Isso tudo se eu fosse nada mais do que teu.