segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Páginas de ontem




Eu tentei consertar uma coisa que eu nem deveria ter tocado,
Agora,
todas as palavras giram na minha cabeça como uma antiga canção que eu não consigo deixar de cantar.
Eu não estou mais tentando achar a lua, porque ela não está no céu esta noite.
Eu não quero acordar pra dentro do sono.
É como se o manancial não secasse nunca e você fica repetindo as minhas palavras, repetindo sempre as minhas velhas palavras. 
Eu sequer lembrava delas, não sabia mais como podiam soar, assim lentas e fragéis.
Eu tentei costurar e remendar e costurar novamente os meus pensamentos, como se fosse possível, como se fosse fácil.
Mesmo que eu soubesse ser impossível fazê-los voltar ao lugar, eu tentei.
Eu tateei as cegas a noite com maior penumbra que eu pude encontrar, o lobo em mim.
O lobo em mim me olhava com olhos de chuva. E a chuva não me dizia mais nada. 
A chuva chovia pela maior razão: Tinha de chover hoje.
E vocês todos estavam certos.
A minha sensibilidade ía acabar me matando, o meu coração que comia universos, ía me derrotar.
Eu me danava por não saber fechar essas chagas que aumentavam de noite, que reabriam sem o menor pudor, sem que eu pudesse lutar contra ou implorar por redenção.
O cansaço me consumia e eu não podia mas resistir a ele. 
A hora do cansaço chegara, e era só me entregar a ela.
Mas você repetia as minhas palavras e eu pensava no quão bonito isso era, no quão eu me orgulhava com timidez.
Só que minhas palavras estavam envelhecendo e eu estava me cansando e cansar-se é irreversível.
A lua já não me diz nada, mas você repetir minhas palavras como se ainda fossem reais, me deu vontade de sorrir por dentro. De sorrir pro céu, mesmo ele sendo vazio...
De dormir como uma criança no útero, de chorar mansinho e esquecer da chuva.
Você não deveria repetir minhas palavras, você não deveria acordar esse lobo cansado dentro de mim.
Porque ele acorda como quem mata.
Com a delicadeza de quem não pede, mas exige pra si o mundo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Madrugadas


 "Ando cansada de tudo, desses nadas.

A vida é o que a gente não quer" - Nana Caymmi



, E também que eu não acredito que alguém possa ouvir Eleanor Rigby sem sentir "aquele peso" no ombro esquerdo.
- Do que você tá falando, Lizzie? É só uma música, não tem nenhuma ambição de ser mais do que isso.
- Você não vê, Cleo? "Ah, look at all the lonely people" ... É como um grito mudo, é como um cãozinho se escondendo numa marquize pra não morrer seja pelo frio ou pela hostilidade dos generosos. Pesa muito.
-Foi Lennon que escreveu... quase inteira, não? Andei lendo...
- Lennon não conseguiria olhar pra fora, porque era "INSIDE" demais, essa canção é filha do McCartney.
-Hm, tanto faz. É uma boa música, Lizzie.
- Mas a pergunta continua suspensa, como gotas de uma chuva fora de época que ameaça cair, mas só ameaça. De onde vem todas essas pessoas, Cleo? Elas não pertencem a lugar nenhum.
- Você passou muito tempo dentro da sua cabeça, Lizzie. Se perdesse essa mania de examinar as coisas pelo que você pensa que elas são e não pelas coisas em si, você seria feliz. Você teria uma vida brilhante.

1966 - 2019 - 2010 - 2011 - 2021

"Porque minha vida faz a vida da Eleanor Rigby parecer uma festa"

Eu tenho 10 escolhas e eu prefiro o infinito, só porque aquela velha companheira disse/escreveu que não há adjetivos que descrevam o infinito, ele É e se basta sendo, sendo e sendo, infinitamente, como uma torrente, como uma torrente lírica e amorosa, infinitamente doce, infinitamente azul, infinitamente finita.
O que eu poderia dizer que já houvesse dito, ou lido, ou escrito? O que melhor representaria? 10 modos de não se perder agora, 10 anos ou mais? O amadurecimento esperado chega a mim com cara de cansaço, de quem já andou demais por caminhos descarpados e agora quer repousar em qualquer colchão duro.
Contar até 10. Respirar. Não transborde agora, lembre-se do diadema brilhante, das pedrinhas, das conchinhas, lembre-se do mar. Conte até 10. Expirar. Repetindo até a exaustão como um mantra.
O que eu posso fazer em 10 minutos? Salvar 10 vidas? Escrever 10 contos que se resumiriam em uma sentença apenas? Saltar 10 vezes no abismo? Destruir 10 sonhos ou mais... O que eu posso fazer em 10 anos?  [...]

00:21:34, uma pequena luminária reflete espectros na parede a frente a cama de Lizzie.

, Poxa, Lizzie... nós temos uma festa, Julian disse que ficaria muito aborrecido se você não fosse. Ele ama você, sua tolinha! Venha cá... "Dear Prudence, don't you come out to play...?"

( Eu sempre disse que ele não devia me amar, como se eu pudesse impedir que alguém me desse o que eu neguei aos outros e a mim "uma oportunidade de amor, não o grande amor em garrafais, mas um amor fácil, amor de pizza, cerveja aos fins de semana, vinho nos aniversários, rapidinhas no banco de trás do carro, mas eu não quero mais viver descartando pessoas como descarto sapatos com saltos desgastados, não mais)

- Diz pra ele que eu estava indisposta, que hoje trabalhei um bocado e que ainda tive que ir pro lançamento do romance da Sylvia... Faz isso por mim, por favor.

(Ela tem medo de se apaixonar e deixar de ser uma eterna Eleanor Rigby, ela não quer se envolver porque acha que não é digna de amor ou capaz de amar)

-Você precisa sair, essa vida completamente regrada vai acabar de matando. Precisa ver que dentro das outras pessoas também há sangue, precisa ver gente jovem e viva, como você. Não mate sua juventude, não enquanto pode gastá-la.

(Porque eu tenho que aguentar essa mentira como se fosse o único modo de vida, porque eu não posso escolher a vida, dos marginais, das putas, dos sábios e dos santos, porque eles vivem melhor do que nós... porque nós vivemos comendo a vida sem ter apetite, porque nos empurram essa vida agitada como um prato de mingau nojento que temos que enfiar goela a baixo e vomitar baixinho nos banheiros imundos das rodoviárias, e nossas mãos estão cheirando a notas sem valor, a orgasmos sem sentidos, nossa vida tá cheirando a boeiro, a esgoto... uma vida vivida sem saber que não estava vivendo, eu não estava vivendo)

-Eu não vou, Cleo... eu ando muito distante de mim, vivendo rápido demais, quero fazer mais companhia a mim mesma, preciso cuidar de mim.

-E um amor novinho em folha não está nos seus planos? O Julian?

-Um amor não devia estar nos planos de ninguém, porque não é o que importa, nunca foi.

(Por que essa fome desesperada por encontrar em outro o que deviamos saciar em nós mesmos? Porque essa vontade insana de se encontrar? E frequentemente se encontrar apenas pra se perder, apenas pra trocar olhares furtivos, pra trocar fluidos e palavras fáceis, meu deus, como trocamos palavras fáceis, como não cuidamos de nós, como não cuidamos do outro, como somos baixos, vils e levianos, eu não quero ser leviana, mas eu também já não sei o que quero ser)

-O tempo está acabando, Lizzie, você sabe que vai morrer.

VOCÊ SABE QUE VAI MORRER

(Eu sei que vou morrer... e isso só me faz fraquejar mais, entre querer esta vida de vitrine, este modelo falso de felicidade, essa alegria comprada, barata e nojenta, ou querer sorrir pelo menos uma vez por genuína felicidade e não ser crucificada por estar dizendo a verdade, ser recompensada com outros mil sorrisos sinceros, não ferir e não ser mais ferida, então eu morreria em estado de graça, e qualquer coisa que se faça em estado de graça, é coisa santa, é coisa que não é desse mundo e deve ser respeitada, com o silêncio)

-Me respeite e lembre-se de mim com o seu silêncio, eu não quero que me entenda, quero que me dê a graça-além-da-compreensão que é o verbo não dito.

....


Essa madrugada não vai acabar nunca, ela vai ficar acontecendo em mim pelo resto da vida. Nossas memórias não acabam nunca, em algum lugar elas ainda estão acontecendo e vão acontecer enquanto restar alguém que recorde. Nós morremos, mas o que vivemos fica, não é assim? E eu estou presa nestes quadros tristes, nestes painéis alegres... entre uma flor  e uma lágrima, porque ambas são lindas. Eu estou parada em todas as ruas que já passei e nas cores que vesti ainda as visto hoje, e ainda guardo o sabor das bocas, das peles, das luas... Infinitas.
Qual é a cor do infinito? Quanto tempo a gente demora num abraço? Quantas lágrimas são necessárias pra descascar a pele ao lado do nariz? Por que a gente treme? Por que o infinito não tem adjetivo? Porque ele não tem qualidades e defeitos... porque ele não deve explicações a nenhum Susserano, porque ele É.
Dentro dessa madrugada que não acaba nunca, eu vejo rostos conhecidos e outros nem tanto, e todos estão perto mas distantes, estão dentro de suas próprias madrugadas que não acabam nunca. É ali que a vida acontece e eu quero agora mais do que antes, acumular madrugadas e mais madrugadas.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Além do gosto da eternidade

           

So, tell me how long
Before the last one?
And tell me how long
Before the right one?


The story is old - I know
But it goes on
The story is old - I know
But it goes on
                                                                                                                 The Smiths


                 Então vai lá espatifar teu coração contra a parede, buscar consolo a tua dor em outras dores menos piegas, compor samba até de madrugada e ir dormir com gosto de vômito e de solidão na boca. Vai imaginar que de longe alguém te olha e te cuida e te estende a mão pra atravessar a vida, vai fingir que no fim da lida não tem dois olhos de lobo pra te devorar. Vai enfrentar a derrocada sorrindo e tentando sonhar, porque os sonhos não vem quando o pesadelo te espera ao acordar e depois não diga que não avisei. Não diga nunca que eu não avisei. Porque eu não te empedi de cair apenas pra que pudesse te virar com o chão e levantar sozinho e levantar pra ver a rua, pra cair de novo e sentir o gosto da chuva no asfalto. A chuva no asfalto, a tarde cor-de-rosa, as flores caindo e eu me sentindo em pleno estado bossa nova da alma, agradecendo ao feng shui, fazendo coroa de flores pra Oxum, costurando os vestidos de Iemanjá, rezando prece miúda "Mãezinha me devolva ao mar que eu não sei lidar com esta outra água salgada, me traga de volta as pérolas, mãezinha".
                 Então vai procurar o gosto sempre ambíguo do mar e da tormenta em outras bocas menos ácidas, tantas vezes te disse: Filho, essas paixões violentas tem fins violentos, vocêvairessecarmorreresvairsangrar até não restar nem pó dessa tua prepotência  de criatura solitária. Quem vai te aplaudir as glórias, agradecer os empréstimos e favores, te lavar a cara e dizer que sente tua falta quando tiveres noventa anos? Bom seria se morresses agora, ali mesmo naquele avenida suja com cheiro de cigarro barato e palavras facéis, que um carro em alto velocidade esmagasse teu crânio e não restasse nada dos teus pensamentos, morrer é fácil. Eu vivia repetindo como um mantra nos tempos difíceis que tudo isso pelo o que você está passando é fácil, a gente se acostuma a muita coisa, meu caro.
Porque eu queria mesmo ser um mensageiro e desejava (como eu desejava) que todas as noticias fossem boas, como dizia a canção na rádio do carro. Mas eu corri rápido demais, criança, eu corri mais do que pude e menos do que precisava, sempre é menos do que eu precisava, sempre o gosto do melhor morango poderia ser melhor, aquele gosto além da perfeição, aquele gosto que cá pra mim beira ao contato com a eternidade.

                  Não te acanhes por sobreviver, eu sobrevivo a esta carne que me é estranha e estrangeira a todo santo dia, eu sobrevivo a minha própria repulsa por mim toda vez que levanto de manhã e só me resta da véspera a culpa e o rímel que delimitou o espaço das lágrimas, o caminho das lágrimas e da minha sonolência. Eu não sou uma vítima, cara, eu sou uma escrava deste covil sujo, sou uma criatura que nasceu mesmo neste limo, neste manicômio a céu aberto. Eu não quero explicações que não explicam o que eu sinto e nem palavras cegas que esbarram na boa moral e nos príncipios. Antes de querer isso tudo, prefiro não querer porra nenhuma e que essa porra seja no mínimo autêntica, espessa, doentia e letal.

                Mas vai, segue teu caminho carregando cruzes que não são tuas, procurando um muro de lamentações  que vai te dar o caminho, mesmo que saiba de antemão que o caminho não existe e o que você vier a encontrar é só uma promessa de caminho. Vai, se joga na vida como quem perde e sorri, como quem ama e mata o amor com facadas ao som de blues numa noite de quarta, sem química, numa noite de quarta sem química.
Vai ficar parado na mesma esquina pra sempre esperando o sapo ou a sapa que passar, vai ficar parado no tempo, naquele mesmo e maldito dia. Vai contar as horas das demoras dos outros de ti, vai dizer que eu não avisei, que não alertei e não fui sincera, mas eu fui... De pouca coisa que fui integralmente, lembrei-me de manter a sinceridade, falseei muitos príncipios, burlei regras internas até o cansaço dos ossos, mas mantive a fidelidade às minhas palavras, porque só elas sobreviverão a mim, quando eu estiver ne Terra dos sem sapatos e sem riquezas.

                 O que eu queria agora era chegar ao estado de nada querer e nada esperar, nem de mim, nem das pessoas, nem do sistema (alguém espera ainda?), nem de Deus. Não esperar é viver, não indagar ao vento por que ele existe é a nossa maior forma de comungar com ele. Aceitar que o que existe existe simplesmente sem necessitar de entendimentos. Você lê Caeiro, meu filho? Não?! Não sabe o bem que está perdendo, fica aí perdendo tua vida com essas putas que só te vendem o riso e a buceta enquanto poderias mergulhar no mais profundo mistério que é viver. O mais profundo mistério que é viver. Mergulhar sem restrinções no abismo, não saber o que esperar, viver sem métodos.   

             Será que eu ainda posso, meu filho? Será que essa parte de mim que ainda sonha com príncipes disfarçados, duelos de espadas, feitiços e castelos ainda respira forte? Será que já não respirei um naco muito forte de vida real? Será que eu desliguei a televisão quando sai de casa? E o forno? se tudo explodisse, eu não ficaria com nada... Mas o que é ficar? O que é nada? Ninguém fica por muito tempo, todos estamos indo embora o tempo todo e quando eu partir vai ser pra ficar partindo sempre, eu não vou parar não, meu filho, porque não paramos nunca. Esse mundo onde você está, este céu onde estamos todos nunca para de girar, deixa eu girar do meu jeito, deixa eu sacudir minhas saias da asa do vento. Não quero ver só a doença desta cidade prostituta, este caos urbanóide que se assemelha aos meus pensamentos. Eu queria olhar no fundo dos olhos desta cidade e impedir que doença se espalhasse mas é tarde demais até pra mim. E você, calado... sempre tão calado, acha que vai fugir do tempo? Acha que suas lógicas e sofismas fajutos vão escapar das mãos da velhice. Acredite, pro lado de cá só tem desorientação, nego. Ninguém vai te aliviar as chagas, cê vai morrer seco e cego já te disse. Não adianta, pode escolher entre poupar tua vida ou gastá-la, eu vivo entre esses extremos. Os que poupam a vida, são esses santos de papel que encontro todo dia no mercado enquanto compro o meu almoço pós ressaca, eles nem sabem que escolheram poupar a vida, eles nem sabem que isso é poupar a alma, mas a alma já tá consumida, eles vão chegar aos 80 e quando estiverem no meio de uma oração ou de uma refeição balanceada vão desejar ter vivido as orgias que não quiseram viver quando puderem. Relaxa, nós somos tão jovens. Mais jovens do que nunca mas menos do que ontem, a solidão medonha que vai te consumir já bate na porta, este fio branco na sua mão, esse cansaço nos ombros, tudo isso vai ficar pior, sempre pior e por isso mesmo muito melhor. E tem aqueles que decidem gastar a vida, e o ciclo não é menos triste. Vodca -comer bucetas frescas - chupar paus meia bomba - vomitar - small talks - trabalhar de terno e gravata - tédio - rua - casa - rua - casa - tédio - vodca ... É um ciclo onde você cai e não consegue sair, não consegue gritar, não consegue salvar a vida já gasta, e de repente aquela centelha de dentro começa a se apagar e antes que você perceba é seis da tarde, antes mesmo que você se dê conta você tem trinta anos, quarenta, cinquenta, sessenta, e o que você busca? Em que acredita? É o suficiente ter se entregado ao abismo?  Você encontrou o que disse uma vez que precisava encontrar? A gente não encontra sentido nenhum gastando ou poupando a vida. E todos sabemos, mas acostumamos a pensar que não, comigo vai ser diferente.    

             Não foi assim com suas ilusões amorosas? Não existe amor, cara, só existe a ilusão do amor. Amor verdadeiro eu só conheço os platônicos. Quando vezes você fez juras de amor que se desfolharam no outro dia? No turbilhão de uma dança ou afogadas nos peitos de uma garçonete de boate? Quantas vezes você ouviu meio tímido, como se fosse um segredo muito raro que alguém te amava? ALGUÉM TE AMAVA! E se sentiu especial (que palavra ingênua), menos "unloveable" e se sentiu ridículo porque viu que seu amor era como o amor de todos, era mesquinho e você julgava-se capaz de amar sem mesquinhez, sem orgulho, sem posses desnecessárias, como sentiu-se quando pela primeira vez percebeu que era humano? Que não era santo, que não era puro, que não era especial. Porque cabe dizer que eu julguei ser especial antes de sentir o gosto do ácido na língua, antes de sentir o esperma quente na garganta, antes de amar ao ódio e odiar ao amor, eu me sentia especial e "unloveable" e sentir isso me fazia sorrir, eu era um prêmio escondido numa ilha distante, uma princesa aprisionada aos grilhões do seu próprio anseio por se sentir diferente, autêntica. Tentamos muito ser autênticos, não você ou eu.. aliás, não apenas nós que aceitamos isso, mas até os que não dizem. Quantas vezes na minha orelha excitada disseram frases de inflamar os orgãos internos? Eu te amo. A mentira que parece ser verdade porque um dia ela é, mas muda. Muda como as folhagens acima das rochas eternas, muda como o amor de Cathy por Linton. Porque ela nunca poderia amar um homem tão dócil, tão civilizado, tão criado dentro das regras do bem, não.

                     E o amor-rocha eterna? Onde ele está que eu não vejo? Eu não me sinto capaz de sentir mais nada agora. Ah, rapaz... eu me apaixono tanto pela minha alma toda vez que imagino o Heathcliff, porque ele está em mim não como um prazer, mas como um tumor maligno. Sua cólera cega, sua convicção inabalável. Ninguém tem convicções inabaláveis hoje... Ai de mim, que já julguei tê-las, ai de mim que vi uma a uma deslizar pelos meus olhos cansados e tomar ao chão como um castelo de cartas. Convicções são facilmente quebradas quando a paixão cega as almas santas. A paixão sempre escolhe as almas santas para tentar, para destilar sua perigosa astúcias nas veias dos mais fortes mas que parecem fracos. Quantas vezes você quis olhar além do fundo, além da retina, da pupila, da íris dos olhos de alguém, além das células e atómos e dizer fundo-fundo: "eu não tenho muita coisa, não tenho bagagens, nem horários, nem muita vida aqui dentro... mas o que eu tenho é teu". O que eu tenho é teu!

                  E quem nos entenderia na multidão? Eu tô na multidão, eu tô girando com a vida enquanto posso girar. Eu tô enfeitando meus cabelos e salpicando minha cara pra minha mãe Oxum. Eu tô guardando conchinhas pra ficar perto do mar, pra nunca perder quem eu sou, nós criaturas do mar não podemos passar muito tempo longe dos braços da Mãe, senão a gente morre de uma solidão cruel que entende quem já foi sereia, quem já teve as ondas como vestido e o céu como espelho. Mas eu tô sozinha na multidão, será que não vê? Você também tá sozinho na multidão. Nós somos apenas barcos que se cruzam no oceano da eternidade e depois de um leve acenar de mão se vão sem nunca mais se darem por si. Um dia eu cheguei a pensar que a minha solidão pudesse fazer companhia a tua, enquanto a gente tomava um chá ou tragava qualquer bobagem, mas solidões não se dão bem.
                  Eu ando pensando em como é bom estar na multidão e só ter um corpo e uma voz, não ter um nome, não ter um número, só estar ali, nós somos a multidão e a legião de demônios vive na multidão, vive dentro de nós. Mas eu não fujo, eu os convido pra jantar, pra dançar comigo, pra me acompanhar nos lugares onde a dor ameaça sair de dentro e uivar pra lua, nas horas insuportáveis é na presença deles que eu choro, mas não há lágrimas autênticas neste Vale de Lágrimas. São lágrimas repetidas, contadas, pré programadas, porque a sua dor pode ferir a sensibilidade alheia, poupemos o mundo das lágrimas que vem fundo, das lágrimas como poças que dessafogamos nos travesseiros ébrios e que caem nos ouvidos para que não ouçamos a música feliz que tocam ao lado. Chega de olhos vermelhos, você devia saber disso, a alegria é uma obrigação pelo menos até segunda ordem.

                     Mesmo que tudo isso não faça sentido, mesmo que o trem passe muito rápido, mesmo que você veja o grande amor da sua vida indo embora e não queria mais que ele fique, mesmo que os morangos continuem com esse gosto de quase-perfeição, ainda sim, eu terei palavras pra esses dias de domingo quando não é domingo e pra essas procuras insaciáveis e essa fome de vida que te aflige. Você pode falar comigo, mesmo que eu não seja a mesma, porque eu nunca sou o que era ontem, mesmo que eu quisesse eu não teria força pra negar uma prosa sobre qualquer bobagem, sem bobagens metereológicas, eu aceito o que vier. No fim, talvez eu tenho mentido pra mim mesma, quando você já viu o fundo do poço de perto, quando já olhou os olhos do monstro do armário e sobreviveu a isso, quando seus castelos de ilusão já se esvairam sob seus olhos estupefatos, aí então, encara esta medonha solidão e a convide para um chá de hortelã, tenho fé e Lennon também tinha que  o tempo todo e em todos os lugares as coisas estão melhorando, estão melhorando e se mesmo com essas palavras tiradas do fundo da garganta não acreditar em mim, apenas sorria de volta quando te sorrirem, tome o seu tempo e o torne melhor, o mundo continua girando e nós estamos eternamente na multidão. As vezes, por algum motivo incompreensível, alguém sai da turba e se torna autêntico, nesse alguém depositamos toda a nossa crença, todo o nosso passado de rejeições e fados equivocados, mas este alguém nunca vai suprir nossa fome de sabor-além-do-sabor, por isso aquieta teu coração, deixa os navios passarem por ti e seguirem sozinhos no breu. A gente procura um farol, somos todos iguais, rapaz, cê já devia saber disso.  Eu fico por aqui que a noite é longa e a vida é pouca, daqui a pouco amanhece e a dor, a eternidade e a fé morrem junto com a última estrela.


Ps: Este texto é dedicado à Marina Veit (que me cobrou por estar em pouca atividade literária), ao meus Mestres Jack e Gaspar e a todos que encontrem algo além do gosto da eternidade nele, Luz!