sexta-feira, 4 de maio de 2012

Colar de coração


Havia uma rua na terra da garoa, muito maior do que menor, com velhos e velham que tremiam, homens e mulheres que pressavam e meninos e meninas que por ali corriam.
Todos com medo o suficiente, menos uma guriazinha, a que desdenhava.
Aquela, um dia saiu de lá com um Colar de coração inventado no pescoço.
Sua mãe a mandara, com uma cesta de remédios à avó.
Pelo caminho encontrou apenas homens que suavam, traficantes que por ali traficavam e deixavam cá e lá marcas de violência. Lobo não havia nenhum. O lobo se havia tranformado em homem. O homem havia destruido o lobo.
Ela ía cantando uma canção antiga, canção que sua avó costumava cantar a beira de seu berço (...) Nessa rua, nessa rua tem um bosque que se chama que se chama solidão (...)
Ela parou. Sua visão só via vermelho quando ela tomou o caminho mais encurtoso as pernas transpassando uma a outra como fitas na festa de Santo Antônio. Os tiros se ouviam de longe. Colar de coração não podia deixar que uma bala perdida acertasse o caminho.
Demorou pra avistar ao longe a avó, que de súbito a neta reconheceu.
- Sou eu vovó, colar de coração com a cesta de remédios, como a mamãe mandou.
- Deixa na calçada essa cesta e vem pra cá enquanto é tempo.
Mas agora Colar de coração se espantava não só com o cansaço das pernas mas também com a quantidade de sangue-sangue ao redor da avó tão querida quanto se perdendo.
"- Por que essas feições tão cansadas, vovó?"
"- É porque não poderia nunca pra sempre te sorrir, minha netinha."
"- Por que essas mãos tão inertes, vovó?"
"- Por que nunca mais vou tocar teu rosto, minha netinha."
"- Por que esses lábios trementes, gelados e roxos mais que amora, vovó? "
Agora era Colar de coração que chorava.
"- Por que nunca mais o tempo me deixará te beijar, minha neta."
"- Por que esses olhos tão sem luz e cor, vovozinha?"
"- Porque já não te posso ver, nunca mais, minha netinha." - A avó soltou um último gemido quase grunhido.
Pela primeira vez Colar de coração sentiu medo e pela primeira vez, sentiu o lobo por perto, um lobo que vestido de homem apontava o cano da morte em sua cabeça, mas ainda em seu coração ao lado do corpo que havia sido sua avó.


Texto inspirado em "Fita Verde no Cabelo" de João Guimarães Rosa, feito exclusivamente para meu Professor Renato Gaspar de Literatura Comparada.

Um comentário:

  1. Ficou muito bom, nunca ia perceber que tinha a ver com fita verde no cabelo, mas lembrou-me Hobbes, com a frase o homem é o lobo do homem

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