quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Madrugadas


 "Ando cansada de tudo, desses nadas.

A vida é o que a gente não quer" - Nana Caymmi



, E também que eu não acredito que alguém possa ouvir Eleanor Rigby sem sentir "aquele peso" no ombro esquerdo.
- Do que você tá falando, Lizzie? É só uma música, não tem nenhuma ambição de ser mais do que isso.
- Você não vê, Cleo? "Ah, look at all the lonely people" ... É como um grito mudo, é como um cãozinho se escondendo numa marquize pra não morrer seja pelo frio ou pela hostilidade dos generosos. Pesa muito.
-Foi Lennon que escreveu... quase inteira, não? Andei lendo...
- Lennon não conseguiria olhar pra fora, porque era "INSIDE" demais, essa canção é filha do McCartney.
-Hm, tanto faz. É uma boa música, Lizzie.
- Mas a pergunta continua suspensa, como gotas de uma chuva fora de época que ameaça cair, mas só ameaça. De onde vem todas essas pessoas, Cleo? Elas não pertencem a lugar nenhum.
- Você passou muito tempo dentro da sua cabeça, Lizzie. Se perdesse essa mania de examinar as coisas pelo que você pensa que elas são e não pelas coisas em si, você seria feliz. Você teria uma vida brilhante.

1966 - 2019 - 2010 - 2011 - 2021

"Porque minha vida faz a vida da Eleanor Rigby parecer uma festa"

Eu tenho 10 escolhas e eu prefiro o infinito, só porque aquela velha companheira disse/escreveu que não há adjetivos que descrevam o infinito, ele É e se basta sendo, sendo e sendo, infinitamente, como uma torrente, como uma torrente lírica e amorosa, infinitamente doce, infinitamente azul, infinitamente finita.
O que eu poderia dizer que já houvesse dito, ou lido, ou escrito? O que melhor representaria? 10 modos de não se perder agora, 10 anos ou mais? O amadurecimento esperado chega a mim com cara de cansaço, de quem já andou demais por caminhos descarpados e agora quer repousar em qualquer colchão duro.
Contar até 10. Respirar. Não transborde agora, lembre-se do diadema brilhante, das pedrinhas, das conchinhas, lembre-se do mar. Conte até 10. Expirar. Repetindo até a exaustão como um mantra.
O que eu posso fazer em 10 minutos? Salvar 10 vidas? Escrever 10 contos que se resumiriam em uma sentença apenas? Saltar 10 vezes no abismo? Destruir 10 sonhos ou mais... O que eu posso fazer em 10 anos?  [...]

00:21:34, uma pequena luminária reflete espectros na parede a frente a cama de Lizzie.

, Poxa, Lizzie... nós temos uma festa, Julian disse que ficaria muito aborrecido se você não fosse. Ele ama você, sua tolinha! Venha cá... "Dear Prudence, don't you come out to play...?"

( Eu sempre disse que ele não devia me amar, como se eu pudesse impedir que alguém me desse o que eu neguei aos outros e a mim "uma oportunidade de amor, não o grande amor em garrafais, mas um amor fácil, amor de pizza, cerveja aos fins de semana, vinho nos aniversários, rapidinhas no banco de trás do carro, mas eu não quero mais viver descartando pessoas como descarto sapatos com saltos desgastados, não mais)

- Diz pra ele que eu estava indisposta, que hoje trabalhei um bocado e que ainda tive que ir pro lançamento do romance da Sylvia... Faz isso por mim, por favor.

(Ela tem medo de se apaixonar e deixar de ser uma eterna Eleanor Rigby, ela não quer se envolver porque acha que não é digna de amor ou capaz de amar)

-Você precisa sair, essa vida completamente regrada vai acabar de matando. Precisa ver que dentro das outras pessoas também há sangue, precisa ver gente jovem e viva, como você. Não mate sua juventude, não enquanto pode gastá-la.

(Porque eu tenho que aguentar essa mentira como se fosse o único modo de vida, porque eu não posso escolher a vida, dos marginais, das putas, dos sábios e dos santos, porque eles vivem melhor do que nós... porque nós vivemos comendo a vida sem ter apetite, porque nos empurram essa vida agitada como um prato de mingau nojento que temos que enfiar goela a baixo e vomitar baixinho nos banheiros imundos das rodoviárias, e nossas mãos estão cheirando a notas sem valor, a orgasmos sem sentidos, nossa vida tá cheirando a boeiro, a esgoto... uma vida vivida sem saber que não estava vivendo, eu não estava vivendo)

-Eu não vou, Cleo... eu ando muito distante de mim, vivendo rápido demais, quero fazer mais companhia a mim mesma, preciso cuidar de mim.

-E um amor novinho em folha não está nos seus planos? O Julian?

-Um amor não devia estar nos planos de ninguém, porque não é o que importa, nunca foi.

(Por que essa fome desesperada por encontrar em outro o que deviamos saciar em nós mesmos? Porque essa vontade insana de se encontrar? E frequentemente se encontrar apenas pra se perder, apenas pra trocar olhares furtivos, pra trocar fluidos e palavras fáceis, meu deus, como trocamos palavras fáceis, como não cuidamos de nós, como não cuidamos do outro, como somos baixos, vils e levianos, eu não quero ser leviana, mas eu também já não sei o que quero ser)

-O tempo está acabando, Lizzie, você sabe que vai morrer.

VOCÊ SABE QUE VAI MORRER

(Eu sei que vou morrer... e isso só me faz fraquejar mais, entre querer esta vida de vitrine, este modelo falso de felicidade, essa alegria comprada, barata e nojenta, ou querer sorrir pelo menos uma vez por genuína felicidade e não ser crucificada por estar dizendo a verdade, ser recompensada com outros mil sorrisos sinceros, não ferir e não ser mais ferida, então eu morreria em estado de graça, e qualquer coisa que se faça em estado de graça, é coisa santa, é coisa que não é desse mundo e deve ser respeitada, com o silêncio)

-Me respeite e lembre-se de mim com o seu silêncio, eu não quero que me entenda, quero que me dê a graça-além-da-compreensão que é o verbo não dito.

....


Essa madrugada não vai acabar nunca, ela vai ficar acontecendo em mim pelo resto da vida. Nossas memórias não acabam nunca, em algum lugar elas ainda estão acontecendo e vão acontecer enquanto restar alguém que recorde. Nós morremos, mas o que vivemos fica, não é assim? E eu estou presa nestes quadros tristes, nestes painéis alegres... entre uma flor  e uma lágrima, porque ambas são lindas. Eu estou parada em todas as ruas que já passei e nas cores que vesti ainda as visto hoje, e ainda guardo o sabor das bocas, das peles, das luas... Infinitas.
Qual é a cor do infinito? Quanto tempo a gente demora num abraço? Quantas lágrimas são necessárias pra descascar a pele ao lado do nariz? Por que a gente treme? Por que o infinito não tem adjetivo? Porque ele não tem qualidades e defeitos... porque ele não deve explicações a nenhum Susserano, porque ele É.
Dentro dessa madrugada que não acaba nunca, eu vejo rostos conhecidos e outros nem tanto, e todos estão perto mas distantes, estão dentro de suas próprias madrugadas que não acabam nunca. É ali que a vida acontece e eu quero agora mais do que antes, acumular madrugadas e mais madrugadas.

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